STF: Inconstitucionalidade da designação de ofício de audiência de retratação no contexto da Lei Maria da Penha
POR: Cleison Soares da Silva Benites
No dia 07 de agosto de 2016 foi publicada a Lei Federal nº 11.340/2016 que recebeu a alcunha de Maria da Penha. A referida norma criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, mostrando-se um progresso em relação aos anos de procrastinação do Poder Legislativo no que se refere ao tema de agressão ao gênero feminino.
Contudo, apesar do esforço da casa legislativa para atenuação dos impactos causados pela violência contra a mulher, a lei ainda sofre com um sistema opressor que abrange, ainda que de forma velada, todos os âmbitos da sociedade.
Dessa forma, alguns dispositivos da referida norma podem ser descaracterizados de seu inicial escopo, adquirindo sentido inteiramente oposto. Assim, destaca-se o Art. 16 da mesma norma, conforme segue:
Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público. (BRASIL, Lei n. 11.340, 2016, Art. 16).
Porém, é procedimento adotado por magistrados a designação de audiência independentemente do pedido da ofendida, fixando o juiz, ex officio, o comparecimento da vítima em juízo para confirmação do desejo de continuidade da persecução penal, caso em que, na sua falta, é presumida a renúncia tácita à representação.
Questionando referido ato, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP) peticionou Ação Direta de Inconstitucionalidade, que foi protocolada sob o n. ADI 7.267, no dia 11 de novembro de 2022, sob a relatoria do Ministro Edson Fachin.
Contudo, o Senado Federal alegou que a questão se refere à interpretação de norma federal, tendo a competência atribuída ao Superior Tribunal de Justiça, consequentemente arrazoando incompetência do Supremo Tribunal Federal para análise do caso.
Outrossim, o Presidente da República, acolhendo a tese da Consultoria Jurídica da União, manifestou-se pelo não conhecimento da ação, aduzindo que a CONAMP não possui legitimidade ativa para suscitar tal ação, além de postular pela improcedência do pedido, uma vez que o sentido da norma seria inequívoco.
No julgamento, no dia 11 de outubro de 2023, o Tribunal, por unanimidade, julgou parcialmente procedente o pedido e conferiu interpretação conforme a Constituição ao Art. 16 da Lei 11.340.
DO VOTO
Em seu voto, o Ministro Relator perquiriu as preliminares de mérito, analisando assim a legitimidade ativa da CONAMP ao impetrar a ação. Reparemos:
O art. 16 da Lei Maria da Penha, por sua vez, dispõe que “nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público”. Tendo em vista que a interpretação do artigo imputada como inconstitucional pela Associação requerente, caso mantida, poderia, no limite, atentar contra uma atuação que é de competência exclusiva do Ministério Público, há evidente pertinência temática. Ainda de acordo com o estatuto da CONAMP, é de sua competência também “colaborar com os Poderes Públicos no desenvolvimento da justiça, da segurança pública e da solidariedade”. Na linha da jurisprudência desta Corte, que reconheceu a legitimidade na Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho para impugnar a Lei Federal do Amianto (ADI 4066, Rel. Ministra Rosa Weber, DJe 06.03.2018), a finalidade institucional de promover melhorias no funcionamento da justiça é tema ínsito ao campo de atuação institucional do Ministério Público. Noutras palavras, a preliminar de ilegitimidade deve ser rejeitada. (ADI 7267, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 22-08-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 08-09-2023 PUBLIC 11-09-2023).
Dessa forma, expôs o Ministro que a Associação tem por finalidade defender os princípios e garantias institucionais do Ministério Público, assim como sua independência e autonomia funcional. Ademais, considerando que a errônea interpretação empregada ao Art. 16 da Lei nº 11.340/2016, caso mantida, poderia violar a atuação de competência exclusiva do MP, há flagrante legitimidade para a propositura da ação.
Posteriormente, ao examinar a competência do Egrégio Tribunal, afirmou:
A interpretação alternativa, no sentido de autorizar o juiz a designar, de ofício, a audiência prevista no art. 16, não é apenas contrária à finalidade da lei, mas também à própria Constituição. Nada impede, portanto, que no âmbito da jurisdição constitucional também se reconheça a inconstitucionalidade de uma das acepções dada à norma objeto da ação. (ADI 7267, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 22-08-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 08-09-2023 PUBLIC 11-09-2023).
Portanto, havendo diversos litígios no tocante à interpretação deste artigo da Lei Maria da Penha, como também vultosa controvérsia jurisdicional em todo o território nacional, a Constituição é lesada, suscitando dessa maneira a possibilidade de discussão pelo Supremo Tribunal Federal.
Em seguida, passou a examinar o mérito do caso. Assim, declarou que o art. 16 da Lei Maria da Penha não deve ser lido e interpretado de maneira isolada, mas sim em todo o conjunto de normas que orientam o atendimento à mulher por meio de equipe multidisciplinar.
Além disso, trouxe o posicionamento da Convenção para a Eliminação da Discriminação contra Mulher que aduz que todos os órgãos do Estado devem se abster de qualquer ato de discriminação contra a mulher, e depois adotar medidas necessárias para derrogar qualquer prática que as discrimine. Notemos:
No mesmo sentido, a Convenção para a Eliminação da Discriminação contra Mulher prevê que todos os órgãos de Estado, inclusive o Poder Judiciário, devem “abster-se de incorrer em todo ato ou prática de discriminação contra a mulher e zelar para que as autoridades e instituições públicas atuem em conformidade com esta obrigação”. Devem, ainda, “adotar todas as medidas adequadas, inclusive de caráter legislativo, para modificar ou derrogar usos e práticas que constituam discriminação contra mulher”. (ADI 7267, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 22-08-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 08-09-2023 PUBLIC 11-09-2023).
Para mais, apontou que a audiência prevista neste artigo não tem o escopo de verificar a presença de um requisito procedimental, tal qual a representação, mas permitir que a vítima expresse sua vontade de maneira livre. Dessarte, assistida por equipe multidisciplinar, deve partir dessa a solicitação para renunciar à representação.
Logo depois, alegou que qualquer outro sentido atribuído a esse dispositivo deverá ser rechaçado. Vejamos:
A função da audiência perante o juiz não é meramente avaliar a presença de um requisito procedimental, mas permitir que a vítima, assistida necessariamente por equipe multidisciplinar, possa livremente expressar sua vontade. […] Qualquer outra finalidade, ou qualquer estereótipo criado pelo Poder Judiciário para imaginar que a audiência é obrigatória viola o direito à igualdade, porque discrimina injustamente a vítima de violência. […] (ADI 7267, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 22-08-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 08-09-2023 PUBLIC 11-09-2023).
Em conclusão, afirmou que referida interpretação a esse artigo é contrária à Constituição, às obrigações internacionais que o país assumiu e ainda ao próprio sentido da norma legal, uma vez que, não havendo nenhum sinal de desinteresse pela retratação da vítima, o magistrado deve dar continuidade à persecução penal. Observemos:
[…] “se a vítima demonstrar, por qualquer meio, interesse em retratar-se de eventual representação antes do recebimento da denúncia, a audiência preliminar, prevista no art. 16 da Lei n. 11.340/2006, deve ser realizada. Todavia, se não há a iniciativa da vítima de levar ao conhecimento da autoridade policial ou judiciária sua vontade de retratar-se, deve o Magistrado proceder à admissibilidade da acusação. […] (ADI 7267, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 22-08-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 08-09-2023 PUBLIC 11-09-2023).
DA DECISÃO
No que se refere à decisão, houve a afirmação de que a interpretação dada ao Art. 16 da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2016) é contrária à Constituição, além de ferir os encargos internacionais que o Brasil assumiu. Ademais, também lesou própria norma que a prevê.
Assim, caso a vítima demonstre em algum momento a vontade de retratação, deve essa, assistida por equipe composta por profissionais de diversas áreas do conhecimento, ser levada à presença do juiz competente para retratar-se.
Dessa maneira, de acordo com sua finalidade, o dispositivo legal visa a impedir que a ofendida proceda à retratação por meio de qualquer coação que venha a sofrer, seja por familiares, autor ou quaisquer outros, e que macule seu autêntico anseio.
Portanto, designar audiência, ex officio, para que a ofendida ratifique sua vontade de prosseguir com a persecução penal não apenas fere a dignidade da pessoa humana, mas também discrimina o gênero feminino.
Por fim, ante o exposto, o Tribunal, por unanimidade, julgou parcialmente procedente a presente ação direta, para dar interpretação conforme a Constituição ao artigo 16 da Lei 11.340, de 2006, de modo a reconhecer a inconstitucionalidade da designação, de ofício, da audiência nele prevista, assim como da inconstitucionalidade do reconhecimento de que eventual não comparecimento da vítima de violência doméstica implique “retratação tácita” ou “renúncia tácita ao direito de representação”, nos termos do voto do Relator.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 28 set. 2023.
BRASIL. Lei n. 11.340 de 07 de agosto de 2016. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 28 set. 2023.
STF. ADI 7267, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 22-08-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 08-09-2023 PUBLIC 11-09-2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6519419. Acesso em: 28 set. 2023.
