STF: O marco temporal das terras indígenas: apontamentos legislativos e jurisdicionais por meio da análise da Lei n. 14.701/23 e do Recurso Extraordinário n. 1017365

Postado por: Francisco Ilídio Ferreira Rocha

POR: Amanda Antkiewicz & Maria Eduarda B. Monteiro Costa.

 

Em 20 de outubro de 2023, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou, com vetos, a nova Lei n. 14.701/23 que regulamenta os direitos indígenas e suas terras, conforme estabelecido no Artigo 231 da Constituição Federal de 1988. Esta legislação aborda o reconhecimento, a demarcação, o uso e a gestão de terras indígenas. É importante notar que se consideram terras indígenas as áreas tradicionalmente ocupadas, conforme preconiza a Constituição; as áreas reservadas, designadas pela União por outros meios; e as áreas adquiridas por meio de transações de compra e venda ou doação.

Em decorrência dessa inovação legislativa, as Leis n. 11.460, de 21 de março de 2007 (que trata do plantio de organismos geneticamente modificados); n. 4.132, de 10 de setembro de 1962 (que versa sobre desapropriações por interesse social) e n. 6.001, de 19 de dezembro de 1973 (que dispõe sobre o estatuto dos indígenas) foram sujeitas a alterações.

A Lei n. 14.701/23 originou-se de uma iniciativa da Câmara dos Deputados (Projeto de Lei n. 490/07), aprovada em maio deste ano com diversas modificações. No Senado, a proposta, agora numerada como PL 2903/23, foi aprovada em setembro.

O texto aprovado pelo Congresso Nacional fundamentava-se na tese do marco temporal e, entre outros aspectos, permitia a exploração econômica das terras indígenas, inclusive em cooperação ou mediante contratação de não indígenas.

Entretanto, esses dois pontos foram objeto de vetos, uma vez que a decisão do Presidente Lula eliminou aproximadamente um terço da versão original do Congresso, conforme informado pela Advocacia-Geral da União (AGU). Apenas 9 dos 33 artigos foram mantidos integralmente.

Todos os vetos presidenciais ainda serão submetidos à análise do Congresso em uma data a ser definida. Para que um veto seja derrubado, é necessário obter pelo menos a maioria absoluta dos votos de deputados (257) e senadores (41), computados separadamente.

É relevante pontuar, dentro desse contexto, que antes da sanção da lei em questão, o marco temporal já havia sido analisado pelo Supremo Tribunal Federal (conforme doravante será analisado) e que, consequentemente, isso influenciou o atual Presidente a certos vetos, resultando na redação atual da lei. Isso deixa nítido que há um embate entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário sobre a temática do marco temporal.

Nesse sentido, o STF analisou a questão a partir do Recurso Extraordinário com repercussão geral n. 1017365. Trata-se de um pedido de restituição da posse apresentado pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e membros da comunidade indígena Xokleng. Essa disputa envolve uma região que os indígenas afirmam ser parte de seu território tradicional, e essa reivindicação já foi reconhecida e identificada em estudos antropológicos da Funai, além de ter sido declarada como tal pelo Ministério da Justiça.

A terra em questão é compartilhada por membros de diferentes grupos indígenas, incluindo os povos Guarani e Kaingang, e faz parte do território Ibirama-Laklanõ, que ao longo do século XX sofreu reduções. Os indígenas mantiveram sua reivindicação sobre essa área ao longo do tempo, fundamentados em estudos e declarações que a reconhecem como parte de seu território ancestral.

Em uma decisão emitida em 11 de abril de 2019, a totalidade dos membros do Supremo Tribunal Federal (STF) concordou em reconhecer a importância geral do julgamento do RE 1017365. Esse reconhecimento implica que as determinações resultantes desse processo estabelecerão um precedente relevante para todos os litígios relacionados a terras indígenas, abrangendo todas as instâncias do sistema judicial.

Atualmente, existem inúmeros litígios e disputas legais relacionados à demarcação de terras e à posse de territórios tradicionais que se encontram pendentes nos tribunais. Além disso, várias propostas legislativas estão em tramitação com o objetivo de modificar ou restringir os direitos constitucionais dos povos indígenas. Ao conceder o reconhecimento da importância geral, o STF também sinaliza a necessidade premente de estabelecer uma clareza sobre essa questão.

Essencialmente, a questão em jogo se resume à validação ou à negação do direito mais fundamental dos povos indígenas: o direito à terra. Atualmente, existem duas teorias principais em conflito. De um lado, encontra-se a “teoria do indigenato”, uma tradição jurídica que remonta ao período colonial e reconhece o direito originário dos povos indígenas à posse de suas terras, ou seja, um direito anterior ao estabelecimento do próprio Estado. A Constituição Federal de 1988 segue essa tradição ao assegurar aos indígenas “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.

Por outro lado, há uma abordagem mais restritiva que busca limitar os direitos territoriais dos povos indígenas, reinterpretando a Constituição com base na teoria supramencionada denominada “marco temporal”.

Como resultado do julgamento, o STF rejeitou, no dia 21 de setembro deste ano (quase um mês da sanção com vetos da Lei n. 14.701/23), a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Por 9 votos a 2, o Plenário do Supremo Tribunal Federal definiu que a data de 5 de outubro de 1988 (dia promulgação da Constituição Federal) não pode ser utilizada para definir a ocupação tradicional da terra por essas comunidades.