STF: Inconstitucionalidade da designação de ofício de audiência de retratação em caso de violência doméstica contra a mulher

Postado por: Francisco Ilídio Ferreira Rocha

Por: Vagner Teixeira da Silva

Apresentamos o voto do relator Ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin que tem por objeto a interpretação do art. 16 da Lei 13.430, de 2006 (Lei Maria da Penha), proposta pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP, entidade cuja legitimidade já foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (v.g., ADI 4824, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 27.03.202).

Ocorre que todas as conquistas e avanços plasmados na Lei começam a perder efetividade a partir de uma compreensão dos Tribunais brasileiros que, fugindo do espírito e da vontade que norteou a elaboração do texto legal, passaram a definir como de ação penal pública condicionada à representação da vítima, os crimes objeto da referida norma.

Com efeito, interpretando o art. 16 da Lei Maria da Penha, os Tribunais começaram entender que os crimes de violência contra a mulher devem ser apurados somente a partir da representação da vítima, ou seja, somente quando a mulher se dispuser a denunciar seu agressor é que o Estado poderá adotar alguma providência.

Entenda o caso

O Presidente da República, acolhendo manifestação da Consultoria Jurídica da União, alega que a CONAMP não detém legitimidade para incoar a ação de controle concentrado. O Presidente do Senado Federal defendeu que o sentido da norma não comporta dúvidas de interpretação constitucional, sendo que a interpretação da legislação federal seria de competência do Superior Tribunal de Justiça. O Advogado-Geral da União suscita preliminar de não conhecimento, por entender que a norma questionada possui sentido unívoco, o que, na linha de precedentes deste Tribunal, de fato desautorizaria o conhecimento da ação. Em que pesem as razões trazidas pelas autoridades intervenientes, a ação reúne plenas condições de ser conhecida.

Inicialmente, é preciso destacar que a CONAMP tem por finalidade institucional “defender os princípios e garantias institucionais do Ministério Público, sua independência e autonomia funcional, administrativa, financeira e orçamentária, bem como os predicamentos, as funções e os meios previstos para o seu exercício” (eDOC 3, p. 2). Dessa forma, o Ministério Público defende ser inconstitucional o art. 16 da Lei Maria da Penha, onde se lê que “nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público”.

De acordo com o Ministro Edson Fachin, o reconhecimento pelo Superior Tribunal de Justiça de que o tema merece ser tratado em âmbito de recurso especial é indicativo de que a interpretação dada ao art. 16 da Lei Maria da Penha tem sido, lamentavelmente, disputada nas demais instâncias do país.

Da fundamentação

O Ministro Edson Fachin reconheceu a ação e sua pertinência por haver controvérsia jurisdicional acerca do sentido de norma federal e no mérito da ação considerou que a mesma deve ser julgada procedente.

Ademais, o Ministro relator em seu voto afirma que a interpretação alternativa, no sentido de autorizar o juiz a designar, de ofício, a audiência prevista no art. 16, não é apenas contrária à finalidade da lei, mas também à própria Constituição. Nada impede, portanto, que no âmbito da jurisdição constitucional também se reconheça a inconstitucionalidade de uma das acepções dada à norma objeto da ação.

O art. 16 da Lei Maria da Penha não deve ser lido de forma isolada, como se contivesse apenas dispositivos dirigidos ao juiz. Ele integra o conjunto de normas que preveem o atendimento por equipe multidisciplinar. Essa equipe deverá ser formada por profissionais de diversas áreas de conhecimento, inclusive externa ao meio jurídico, tais como psicólogos, assistentes sociais e médicos, para que se viabilize o conhecimento das causas e os mecanismos da violência contra a mulher.

Essa finalidade está diretamente relacionada às obrigações que o Estado brasileiro tem no que tange à erradicação da violência contra mulher. De fato, o Artigo 8 da Convenção de Belém do Pará prevê que:

“Os Estados Partes convêm em adotar, progressivamente, medidas específicas, inclusive programas destinados a:

a) promover o conhecimento e a observância do direito da mulher a uma vida livre de violência e o direito da mulher a que se respeitem e protejam seus direitos humanos;

b) modificar os padrões sociais e culturais de conduta de homens e mulheres, inclusive a formulação de programas formais e não formais adequados a todos os níveis do processo educacional, a fim de combater preconceitos e costumes e todas as outras práticas baseadas na premissa da inferioridade ou superioridade de qualquer dos gêneros ou nos papéis estereotipados para o homem e a mulher, que legitimem ou exacerbem a violência contra a mulher;

c) promover a educação e treinamento de todo o pessoal judiciário e policial e demais funcionários responsáveis pela aplicação da lei, bem como do pessoal encarregado da implementação de políticas de prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher;

d) prestar serviços especializados apropriados à mulher sujeitada a violência, por intermédio de entidades dos setores público e privado, inclusive abrigos, serviços de orientação familiar, quando for o caso, e atendimento e custódia dos menores afetados;

e) promover e apoiar programas de educação governamentais e privados, destinados a conscientizar o público para os problemas da violência contra a mulher, recursos jurídicos e reparação relacionados com essa violência;

f) proporcionar à mulher sujeitada a violência acesso a programas eficazes de reabilitação e treinamento que lhe permitam participar plenamente da vida pública, privada e social;

g) incentivar os meios de comunicação a que formulem diretrizes adequadas de divulgação, que contribuam para a erradicação da violência contra a mulher em todas as suas formas e enalteçam o respeito pela dignidade da mulher;

h) assegurar a pesquisa e coleta de estatísticas e outras informações relevantes concernentes às causas, consequências e frequência da violência contra a mulher, a fim de avaliar a eficiência das medidas tomadas para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, bem como formular e implementar as mudanças necessárias; e

i) promover a cooperação internacional para o intercâmbio de ideias e experiências, bem como a execução de programas destinados à proteção da mulher sujeitada a violência.”

No mesmo sentido, a Convenção para a Eliminação da Discriminação contra Mulher, citada anteriormente, prevê que todos os órgãos de Estado, inclusive o Poder Judiciário, devem “abster-se de incorrer em todo ato ou prática de discriminação contra a mulher e zelar para que as autoridades e instituições públicas atuem em conformidade com esta obrigação”. Devem, ainda, “adotar todas as medidas adequadas, inclusive de caráter legislativo, para modificar ou derrogar usos e práticas que constituam discriminação contra mulher”.

Percebe-se que, a função da audiência perante o juiz não é meramente avaliar a presença de um requisito procedimental, mas permitir que a vítima, assistida necessariamente por equipe multidisciplinar, possa livremente expressar sua vontade. É a vítima que, assistida por equipe multidisciplinar, deve se manifestar livremente. Não cabe ao juiz delegar a realização da audiência para outro profissional, nem cabe o juiz designar, de ofício, a audiência.

Qualquer outra finalidade, ou qualquer estereótipo criado pelo Poder Judiciário para imaginar que a audiência é obrigatória viola o direito à igualdade, porque discrimina injustamente a vítima de violência. A garantia da liberdade só é assegurada se for a mulher quem exclusivamente solicita a audiência. Determinar o comparecimento é, portanto, violar a intenção da vítima; é, em síntese, discriminá-la.

Da decisão

Diante dos argumentos mencionados pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, o Ministro relator decidiu ser completamente contrária ao texto constitucional e às obrigações internacionais que o país se obrigou a cumprir tornar obrigatória a audiência prevista no artigo 16 da Lei Maria da Penha.

Tudo isso ponderado, ressalta nítido que a audiência prevista no art. 16 da Lei n. 11.340/2006 não pode ser designada de ofício pelo magistrado, até porque uma iniciativa com tal propósito corresponderia à criação de condição de procedibilidade (ratificação da representação) não prevista na Lei Maria da Penha, viciando de nulidade o ato praticado de ofício pelo juiz.

Com essas considerações, o relator reconheceu a procedência das alegações suscitadas pela CONAMP e deu interpretação conforme à Constituição ao artigo 16 da Lei 11.340, de 2016, de modo a reconhecer a inconstitucionalidade da designação, de ofício, da audiência nele prevista, assim como da inconstitucionalidade do reconhecimento de que eventual não comparecimento da vítima de violência doméstica implique “retratação tácita” ou “renúncia tácita ao direito de representação”.

PROCESSO RELACIONADO: ADI 4824