STF: O marco temporal e a demarcação de terras indígenas: uma análise da Lei n. 14.701/23 e os vetos presidenciais

Postado por: Francisco Ilídio Ferreira Rocha

Por: Maria Eduarda Borges Monteiro Costa

Aqueles que se dedicam e se aprofundam nos ensinamentos teóricos do Direito Constitucional possuem na tese do marco temporal uma instigante aula sobre a separação dos poderes no Direito brasileiro. Declarada pelo Poder Judiciário como inconstitucional, aprovada pelo Poder Legislativo como lei ordinária, vetada pelo Poder Executivo e, finalmente, com o veto derrubado pelo Parlamento, a tese do marco temporal serve como emblemático exemplo para os estudiosos do ordenamento jurídico brasileiro.

Seguindo a cronologia dos eventos mais recentes para os mais antigos (já abordados em textos passados), em 28 de dezembro de 2023, a Lei n. 14.701/23 que estabelece as diretrizes do marco temporal para a demarcação de terras indígenas, foi sancionada após o Congresso Nacional rejeitar os vetos realizados pelo presidente Lula. Em sessão conjunta, 53 senadores e 321 deputados apoiaram a derrubada dos vetos, enquanto 19 senadores e 137 deputados votaram para manter a decisão presidencial.

A tese jurídica conhecida como marco temporal teve origem no Projeto de Lei n° 2903, apresentado pelo ex-deputado Homero Pereira e aprovado pelo Congresso em setembro de 2023, sob relatoria do senador Marcos Rogério (PL-RO).

No dia 21 de setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário (RE) 1017365, com repercussão geral (Tema 1.031), considerou inconstitucional a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Por 9 votos a 2, o Plenário do Supremo Tribunal Federal definiu que a data de 5 de outubro de 1988 não pode ser utilizada para definir a ocupação tradicional da terra pelas comunidades indígenas.

O julgamento teve início em agosto de 2021 e foi um dos maiores da história do STF. Ele se estendeu por 11 sessões, as seis primeiras por videoconferência, e duas foram dedicadas exclusivamente a 38 manifestações das partes do processo, de terceiros interessados

No dia 20 de outubro de 2023, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou, com 34 vetos, a Lei n. 14.701/23. Alguns dos principais vetos foram: a) marco temporal: um dos principais dispositivos vetados é o que estabelecia que os povos indígenas só teriam direito às terras que ocupavam ou reivindicavam em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição Federal; b) exploração econômica das terras indígenas: o presidente vetou a exploração econômica das terras indígenas, inclusive em cooperação ou com contratação de não indígenas; e c) permanência de não indígenas em terras demarcadas: foi rejeitado o seguinte trecho “não haverá qualquer limitação de uso e gozo aos não indígenas que exerçam posse sobre a área, garantida a sua permanência na área objeto de demarcação”.

Os trechos não vetados da Lei n. 14.701/23 pelo Executivo são aqueles que abordam as disposições gerais, modalidades de terras indígenas para reconhecimento da demarcação e transparência do processo administrativo. Além disso, os vetos foram justificados com base na decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a inconstitucionalidade do marco temporal.

No entanto, em 14 de dezembro de 2023, o Congresso Nacional tomou a decisão de revogar a maioria dos vetos presidenciais. Em sessão conjunta, 321 deputados e 53 senadores votaram pela rejeição da maior parte dos itens vetados pelo Chefe do Executivo. Por outro lado, 137 deputados federais e 19 senadores manifestaram-se contrários à derrubada dos vetos.

Dos 34 vetos presidenciais, apenas alguns pontos foram mantidos e, consequentemente, excluídos da Lei 14.701/23. Estes incluem a retomada de terras indígenas devido à alteração de traços culturais, a permissão para o uso de alimentos transgênicos nas Terras Indígenas e a restrição de contato com indígenas isolados.

Após a votação, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), organização nacional do movimento indígena no Brasil posicionou-se no sentido de que “Direitos não se negociam”. Como resposta ao resultado da votação, a Apib protocolou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF) com o objetivo de declarar a inconstitucionalidade da nova legislação, que é vista pela articulação como a “lei do genocídio indígena”.

A trajetória da tese do marco temporal caracteriza-se pela interação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, e destaca-se pela complexidade do sistema legal brasileiro e a necessidade de reflexão sobre os direitos indígenas. A ADI proposta pela APIB no STF servirá como um lembrete de que a discussão sobre os direitos indígenas está longe de terminar e que necessitará de um diálogo ainda mais amplo, plural e inclusivo na sociedade brasileira.