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STF: Prisão especial com base em grau de instrução acadêmico é incompatível com a Constituição Federal

Postado por: Francisco Ilídio Ferreira Rocha

POR: Cleison Soares da Silva Benites

1. DO CASO

No dia 03 de outubro de 1941, pelo então Presidente da República, Getúlio Vargas, foi publicado o Decreto-Lei n. 3.689, que instituiu o Código de Processo Penal, vigente até os dias atuais. Assim, tal norma legal estabeleceu as diretrizes e os métodos utilizados na prestação jurisdicional do direito material penal, transformando-se em efetivo instrumento de execução do Código Penal. Porém, referido Decreto-Lei é demasiado antigo e, tendo em vista a evolução inerente à  sociedade e aos direitos humanos, alguns de seus comandos confrontam os princípios da hodierna Constituição Federal de 1988.

Dessa maneira, foi peticionada pelo Procurador-Geral da República, em 09 de março de 2015, uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, na qual requeria a declaração da não recepção pela CF/1988 do Art. 295, inciso VII, do Código de Processo Penal. Eis o dispositivo:

Art. 295. Serão recolhidos a quartéis ou a prisão especial, à disposição da autoridade competente, quando sujeitos a prisão antes de condenação definitiva:
[…]
VII – os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República. (BRASIL, Decreto-Lei n. 3.689, 1941, Art. 295, VII).

Dessarte, na Ação, que foi protocolada sob o n. ADPF 334, o PGR alegou que havia, no artigo citado, afronta não só ao princípio republicano, mas também ao princípio da isonomia. Afirmou ainda que diferenciar os presos unicamente em razão do grau de instrução acadêmica feriria também a dignidade da pessoa humana, princípio constitucional e internacionalmente tutelado.

Prosseguindo, o Min. Teori Zavascki, relator inicial da Ação, pediu a manifestação das autoridades requeridas na demanda, como também do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da União, autor da Ação. Então, pronunciaram-se pela recepção da norma questionada a Presidente da República, o Presidente do Congresso Nacional e o AGU, porém o PGR ratificou seu pedido apresentado na inicial da ADPF. Enfim, a Ação, que, após a morte do Min. Teori Zavascki, passou à relatoria do Min. Alexandre de Moraes, teve julgamento no dia 03 de abril de 2023, em que o Tribunal, por unanimidade, declarou a não recepção do Art. 295, VII, CPP pela Constituição Federal de 1988.

2. DO VOTO

Ao analisar a questão, o Ministro Relator perquiriu as preliminares de mérito, analisando assim o cabimento da Ação. Reparemos:

A presente arguição observa os requisitos legais de cabimento previstos na Lei 9.882/1999. Primeiramente, porque os parâmetros indicados pelo Procurador-Geral da República compõem o acervo dos preceitos fundamentais da República brasileira, relativamente aos princípios republicano e isonômico (art. 3o, IV; art. 5o, caput; art. 7o, XXX; art. 37, I e XXI). Além disso, o requerente se insurge contra norma editada antes do advento da Constituição, observando, pois, o critério da subsidiariedade, previsto no § 1o do art. 4o da Lei 9.882/1999. Conheço, portanto, desta ADPF. (STF, ADPF 334, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 03-04-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 25-05-2023 PUBLIC 26-05-2023).

Dessa forma, expôs o Ministro que os fundamentos apresentados pelo PGR se amoldam ao conceito de preceito fundamental, o qual a ADPF tem a finalidade de tutelar. Além do mais, tal Ação foi protocolada com o intuito de questionar a recepção, ou não, de norma anterior à Constituição que, em razão do seu caráter residual, é o único instrumento de controle de constitucionalidade aplicável ao caso.

Logo depois, passou a analisar o mérito do litígio. Assim, afirmou que a norma referida neste artigo trata de uma modalidade de prisão especial, resumindo-se na possibilidade de atribuir a determinadas pessoas a prerrogativa de, quando sujeitas à prisão cautelar, permanecerem em celas ou estabelecimentos diferenciados dos presos em geral. Após apresentar breve histórico das mudanças sofridas pela prisão especial, afirmou o Relator que, atualmente, basta a segregação dos presos processuais dos demais detentos condenados, sem necessidade de um estabelecimento prisional apenas para este fim, citando ainda precedentes do Egrégio Tribunal. Vejamos:

Desse modo, na disciplina legal vigente, o instituto em questão ficou limitado ao direito de cumprir prisão processual de forma segregada do convívio com os demais presos provisórios. Não há necessidade, como sugerido pela redação original do art. 295 do CPP, de um estabelecimento prisional especialmente destinado para esse fim, ou de um recinto com características diversas daquelas especificadas para o cárcere comum (§§ 2o e 3o do art. 295). Além disso, apenas na impossibilidade de se manterem separados os detentos é que será cabível a concessão de prisão domiciliar ao preso especial, na forma do art. 1o da Lei 5.256/1967. Essa asserção foi confirmada por esta SUPREMA CORTE no julgamento do HC 116.233-AgR (Rel. Min. ROSA WEBER, DJe de 26/8/2013). (STF, ADPF 334, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 03-04-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 25-05-2023 PUBLIC 26-05-2023).

Seguindo, apontou o Ministro ser a igualdade um preceito fundamental de nossa Constituição, impossibilitando que qualquer desigualdade irrazoável ou arbitrária produza frutos em nosso ordenamento jurídico. Porém, aduziu que é possível tratamento desigual das pessoas, desde que existam fundamentos adequados para que esse procedimento seja constitucional. Dessa forma, pode-se tratar os desiguais com desigualdade, na medida em que se desigualam. Notemos:

Diante disso, o princípio da igualdade se volta contra as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, mas não impede o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, como exigência própria do conceito de Justiça. (STF, ADPF 334, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 03-04-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 25-05-2023 PUBLIC 26-05-2023).

Aliado a isso, há em nossa Constituição um direito fundamental de que, com base na natureza do delito, a idade e o sexo do apenado, a pena será cumprida em estabelecimentos distintos (CF, art. 5o, XLVIII). Assim, ao analisar os presos que já exerceram cargos na justiça criminal, ou no combate ao crime, afirmou o Relator que encarcerá-los com os demais apenados seria o mesmo que instituir pena de morte para os aqui citados. (Reflexões sobre a prisão especial. Enfoque jurídico, n. 15, Brasília: Tribunal Regional Federal da 1a Região, ago. 2001, p. 4).

Portanto, declarou o Ministro que, em razão da presunção de inocência, tutela do caráter psíquico e físico dos detentos, gravidade dos delitos e outros fundamentos, deve o Estado promover a segregação dos presos, na medida de suas desigualdades, sendo perfeitamente admissível a prisão especial. Vejamos:

Assim, o objetivo desse tratamento diferenciado por parte do Estado, no recolhimento à prisão cautelar, é proteger pessoas desiguais. Verificada maior exposição aos riscos de dano à incolumidade de presos especialmente expostos ou
fragilizados frente ao constrangimento do cárcere, justifica-se a segregação em local separado. (STF, ADPF 334, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 03-04-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 25-05-2023 PUBLIC 26-05-2023).

Logo depois, passou o Relator a apontar os diversos pactos internacionais e legislações de outros países, em que se apresenta a prisão especial como, à semelhança do que acontece no ordenamento jurídico pátrio, uma forma de tratar desigualmente os diferentes em razão de suas características. Assim, internacionalmente, há separações entre mulheres e homens, adultos e jovens, reincidentes e primários, entre outros, porém, não há a segregação por critérios  Estritamente pessoais, tal como o grau de instrução. Então, conclui o magistrado que não há justificativa
para referida divisão subsistir. Vejamos:

Não me parece existir qualquer justificativa razoável, à luz da Constituição da República, que seja apta a respaldar a distinção de tratamento a pessoas submetidas à prisão cautelar, pelo Estado, com apoio no grau de instrução acadêmica, tratando-se de mera qualificação de ordem estritamente pessoal que, por si só, não impõe a segregação do convívio com os demais reclusos. (STF, ADPF 334, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 03-04-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 25-05-2023 PUBLIC 26-05-2023).

3. DA DECISÃO

No desfecho de seu voto, afirmou o Relator que, com fulcro em diversos historiadores, prisão especial que tem como base o critério de grau de instrução acadêmico é um resquício ainda presente do “bacharelismo” que existiu no Império brasileiro. Notemos:

Em nosso próprio país, a distinção de presos com base no grau de instrução acadêmica documenta, de forma já extemporânea, a lógica do bacharelismo, designativo pelo qual as ciências sociais descrevem certo aspecto da formação social do Brasil, onde a condição de bacharel serviu como diferenciação funcional do papel da classe dominante. (STF, ADPF 334, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 03-04-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 25-05-2023 PUBLIC 26-05-2023).

Somado a isso, aponta que a educação superior ainda é uma realidade de poucos brasileiros, transformando a prisão especial desses um verdadeiro privilégio que seria concedido apenas a uma pequena parcela da população, de maneira semelhante ao que acontece no sistema de castas. Reparemos:

A norma impugnada não protege uma categoria de pessoas fragilizadas e merecedoras de tutela, pelo contrário, ela favorece aqueles que já são favorecidos por sua posição socioeconômica. Embora a atual realidade brasileira já desautorize a associação entrebacharelado e prestígio político, fato é que a obtenção de título acadêmico ainda é algo
inacessível para a maioria da população brasileira. A extensão da prisão especial a  essas pessoas caracteriza verdadeiro privilégio que, em última análise, materializa a desigualdade social e o viés seletivo do direito penal, e malfere preceito fundamental da Constituição que assegura a igualdade entre todos na lei e perante a lei. (STF, ADPF 334, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 03-04-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 25-05-2023 PUBLIC 26-05-2023).

Por fim, a ADPF 334/DF foi julgada no dia 03 de abril de 2023 em que, após os votos dos Ministros Alexandre de Moraes (Relator) e Cármen Lúcia, que julgavam procedente o pedido formulado na ADPF, os Ministros Rosa Weber (Presidente) e Edson Fachin em seus votos acompanharam o Relator.

Em conclusão, o Tribunal, por unanimidade, julgou procedente o pedido formulado na presente arguição, para declarar a não recepção do art. 295, inciso VII, do Código de Processo Penal pela Constituição de 1988, nos termos do voto do Relator.

PROCESSO RELACIONADO: ADPF 334 / DF

4. REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 11 nov. 2023.

BRASIL. Decreto-Lei n. 3.689 de 03 de outubro de 1941. Institui o Código de Processo Penal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm. Acesso em: 11 nov. 2023.

STF. ADPF 334, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 03-04-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 25-05-2023 PUBLIC 26-05-2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4728410. Acesso em 11 nov. 2023.

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