STJ: Abordagem motivada pela cor da pele como fundamento de nulidade
Por: Gislaine Martins Leite.
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo, em favor de paciente, impetrou Habeas Corpus nº 660930 perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ) contra decisão de apelação proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), que manteve sentença de 7 anos, 11 meses e 8 dias de reclusão, em regime fechado, além do pagamento de 793 dias-multa, pela prática criminosa descrita no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas) por flagrante de 1,53 gramas de cocaína com finalidade de tráfico de drogas.
A defesa do requerente alega ilegalidade na dosimetria da pena, com valoração negativa da personalidade do agente com fundamento nas condenações transitadas em julgado. Ademais, sustenta a aplicação indevida do agravante contido no art. 61, II, j, do Código Penal (crime praticado em período de calamidade pública), da diminuição de pena descrita no art. 33, §4º, da Lei 11.343/06 e, por conseguinte, o reexame da pena com regime mais brando em substituição da reprimenda.
A Defensoria Pública de São Paulo solicita também a anulação da sentença, uma vez que o auto de prisão em flagrante foi concebido por nulidade. Considerando o depoimento dos agentes policiais que efetuaram o flagrante, a suspeita que a princípio despertou a atenção dos agentes de segurança pública foi a cor da pele do paciente, portanto, fundamento inidôneo. A nulidade do flagrante contamina os elementos probatórios da condenação e a falta de materialidade das provas deve resultar na anulação da sentença e absolvição do paciente.
DA DECISÃO E DE SEUS FUNDAMENTOS
A Sexta Turma decidiu, por unanimidade, conceder Habeas Corpus ao requerente e, contrariando o voto do Sr. Ministro Relator Sebastião Reis Júnior, não foi reconhecida a nulidade das provas e absolvição do paciente.
O STJ entendeu como desproporcional a dosimetria da pena mantida pelo Tribunal de Justiça. Sobre a valoração negativa da personalidade do agente, em decorrência de condenação transitada em julgado e não utilizada para caracterizar reincidência, a Sexta Turma foi ao encontro das recentes decisões deste Tribunal, que aplica esse critério apenas na primeira fase da dosimetria.
O agravante previsto no art. 61, inciso II, j, do Código Penal (prática do delito durante calamidade pública – Pandemia da Covid-19) foi afastado devido ausência de nexo de causalidade entre a prática criminosa e a situação de calamidade. Diante da ínfima quantidade de droga apreendida no flagrante policial, foi considerada a diminuição de pena contida no art. 33, § 4°, da Lei N° 11.343/06, em patamar intermediário (½), em decorrência do paciente possuir anotações criminais.
Ao verificar o auto de prisão em flagrante, o relator reconheceu que as circunstâncias da abordagem policial fora motivada primeiramente pelo paciente ser negro. Observa-se no auto redigido pelas autoridades o seguinte relato: “[…] avistou ao longe um indivíduo de cor negra que estava em cena típica de tráfico de drogas, uma vez que ele estava em pé junto o meio fio da via pública”, versão também constatada por outra autoridade: “que ao se aproximarem da rua Santa Teresa viram um indivíduo negro que se ‘servia’ (sic) algum usuário de droga em um carro de cor clara”. A cor da pele é a única característica física apresentada ao longo do documento, e foi o que de imediato ensejou os policiais a realizarem o auto flagrante.
É importante salientar que a busca policial, como apresenta o art. 240 e 244 do Código de Processo Penal, se dará apenas quando houver fundada suspeita do agente. Destarte, a cor da pele não pode ser considerada como fundamento para a suspeita; essa motivação contraria os princípios do Direito e as garantias fundamentais das pessoas. Condutas violadoras e que configurem racismo e abuso de poder não podem ser suportadas pelo Sistema Jurídico que tem o dever de combatê-las. O fundamento inidôneo para a busca pessoal do paciente tornou a abordagem nula, acarretando ilicitude das provas obtidas. Daí, ausentes os elementos probatórios da condenação, a defesa solicita a absolvição por ausência de materialidade do delito, com fundamento no art. 386, II, do Código de Processo Penal.
Neste sentido, o Ministro-Relator destacou vários precedentes do STJ, inclusive o seguinte:
HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. PROVA ILÍCITA. REVISTA PESSOAL. AUSÊNCIA DE FUNDADAS SUSPEITAS. ILEGALIDADE. OCORRÊNCIA. ABSOLVIÇÃO. HABEAS CORPUS CONCEDIDO. 1. Considera-se ilícita a revista pessoal realizada sem a existência da necessária justa causa para a efetivação da medida invasiva, nos termos do art. § 2º do art. 240 do CPP, bem como a prova derivada da busca pessoal. 2. Se não havia fundadas suspeitas para a realização de busca pessoal no acusado, não há como se admitir que a mera constatação de situação de flagrância, posterior à revista do indivíduo, justifique a medida. Assim, o fato de o acusado se amoldar ao perfil descrito em denúncia anônima e ter empreendido fuga ante a tentativa de abordagem dos policiais militares, não justifica, por si só, a invasão da sua privacidade, haja vista a necessidade de que a suspeita esteja fundada em elementos concretos que indiquem, objetivamente, a ocorrência de crime no momento da abordagem, enquadrando-se, assim, na excepcionalidade da revista pessoal. 3. Habeas corpus concedido para reconhecer a nulidade das provas obtidas a partir da busca pessoal realizada, bem como as delas derivadas, anulando-se a sentença para que outra seja prolatada, com base nos elementos probatórios remanescentes. (HC n. 625.819/SC, Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, DJe 26/2/2021 – grifo nosso).
Ao decidir pela nulidade do auto de prisão em flagrante, o Sr. Ministro Relator Sebastião Reis Júnior reforça a postura atual dos Tribunais em reprimir ações abusivas motivadas por racismo. Há de se considerar o esforço jurídico em combater atitudes vexatórias e violentas orientadas pela cor da pele das pessoas, atos discriminatórios que atacam os direitos e garantias fundamentais.
Os demais integrantes da Sexta Turma, por outro lado, entenderam que não existem suficientes elementos de convicção para afirmar que a abordagem policial teria sido motivada por critérios raciais, no que ficou vencido o voto do Ministro-Relator.
Assim, afastado o pleito de nulidade, foi deferido o redimensionamento da pena de 2 anos e 11 meses de reclusão, além de 250 dias-multa, no valor mínimo legal, e, de ofício, estabelecendo o regime aberto e determino a substituição da pena privativa de liberdade por duas medidas restritivas de direitos a serem fixadas pelo Juízo das Execuções Criminais.
PROCESSO RELACIONADO: Habeas Corpus nº 660930
FONTE: STJ
