STJ: Agente público pode ser acionado diretamente ao incorrer em abuso de direito quando excede suas prerrogativas

Postado por: Francisco Ilídio Ferreira Rocha

Por: André Luciano Vicente da Silva

Segundo decisão da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Recurso Especial nº 1.842.613, o ex-Procurador da República, Deltan Dallagnol, praticou excessos na entrevista coletiva concedida em 2016, na qual fez uso do programa de PowerPoint para expor a denúncia apresentada em face do, à época, ex-Presidente Lula, na operação Lava Jato. Deltan foi condenado ao pagamento de indenização, por danos morais, no importe de R$ 75.000,00 (setenta e cinco mil reais), em favor de Lula.

Relatório do Caso

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA (autor) ajuizou ação de reparação de danos morais em face de DELTAN MARTINAZZO DALLAGNOL (réu), em virtude da realização de entrevista coletiva de imprensa, transmitida em rede nacional, cujo pretexto seria informar a apresentação de denúncia criminal contra o autor por suposta prática de corrupção passiva – entre outros delitos – e por ter recebido, em contrapartida, um imóvel triplex no Guarujá.

Sustenta o autor que o réu se manifestou, durante a apresentação, com adjetivações negativas, incompatível com a dignidade da pessoa humana, com a garantia constitucional da presunção da inocência e com o devido processo legal, com o claro propósito de causar ataques a sua honra, imagem e reputação, agindo com evidente abuso de direito. Assim, Deltan cometeu ilícito passível de reparação pelos danos morais, requerendo a condenação de indenização no valor de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais).

Em contestação, Deltan alegou, preliminarmente, ilegitimidade de parte, sob o argumento de que a ação de indenização por danos causados pelo agente público a terceiros deve ser imposta em face da pessoa jurídica de direito público da qual faça parte o agente, no caso o Ministério Público Federal.

Quanto ao mérito, o réu sustentou que, regularmente designado para compor a força-tarefa da denominada “Operação Lava Jato”, tendo em vista a gravidade dos fatos averiguados nas investigações e, ainda, por ter Lula ocupado o cargo de Presidente da República, Deltan foi compelido a conferir publicidade às informações obtidas quando já reunidos elementos de prova suficientes à propositura da ação penal.

O ex-Procurador afirmou que se valeu dos meios necessários, de forma didática, para narrar com isenção os fatos oriundos da investigação e expostos na denúncia. Acrescentou que a divulgação da denúncia foi considerada regular pela Corregedoria do Ministério Público Federal e pelo Conselho Nacional do Ministério Público.

A primeira instância julgou improcedente o pedido indenizatório, então, Lula interpôs apelação, apreciada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que também lhe negou provimento, subindo seu recurso para o Superior Tribunal de Justiça, que reformou a sentença, no sentido de dar provimento ao pleito, condenando Dallagnol, ao final, a indenizar Lula em R$ 75.000,00.

Polêmica que envolve a decisão

A Constituição/88, prevê no 6º parágrafo de seu 37º artigo:

As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

A ideia por trás desse disposto, pelo constituinte originário, era a de que a pessoa jurídica, seja da administração direta, indireta ou prestadora de serviço público, se responsabilizaria, primariamente, quanto aos possíveis danos causados por seus agentes a terceiros, e, ao mesmo tempo, garantiria que em casos de dolo ou culpa, após a reparação do dano pela primeira parte, caberia ação regressiva em face do agente público. Esta garantia visava proteger duplamente tanto o agente, no desempenho de sua função, quanto a administração, haja vista o direito de ação de regresso.

Em 2019, o STF em concordância com esse entendimento, através do Recurso Especial 1027633/SP, anuiu quanto à impossibilidade de o terceiro prejudicado acionar diretamente a pessoa física do agente público nas ações regulares de seu serviço, em virtude da dupla garantia prestada no Art. 37, §6º da Carta Magna.

Entretanto, muito recentemente e por motivos diversos, principalmente motivos políticos e midiáticos, envolvendo o caso, o STJ em maio de 2022 resolveu dar um novo entendimento a esse dispositivo legal. Trata-se do RE 1842613/SP, interposto por Lula. Na ocasião, o STJ se aproveitou de uma brecha de interpretação do RE 1027633/SP, do STF de 2019, quando este discorre sobre “funções públicas regulares”, dando a seguinte leitura:

Nas situações em que o dano causado ao particular é provocado por conduta irregular do agente público, compreendendo-se “irregular” como conduta estranha ao rol das atribuições funcionais, a ação indenizatória cujo objeto seja a prática do abuso de direito que culminou em dano pode ser ajuizada em face do próprio agente.

Apesar de, num primeiro momento, a decisão ter uma certa base sólida, que visa tentar barrar que agentes públicos ultrapassem os limites de suas atribuições e, assim, realizem ações que não mais seriam consideradas em nome do Estado e, ao fazê-lo, se causarem dano a terceiro, poder-se-ia pular a etapa de buscar a reparação frente ao Estado e buscar a reparação contra a própria pessoa física causadora do dano, também se criou uma brecha que abre interpretações divergentes quanto ao direito garantido pelo parágrafo 6º do Art. 37 da CF/88.

Destaca-se a própria controvérsia entre as instâncias superiores sobre o mesmo assunto. Enquanto uma (STF) dispôs que, pelo princípio da dupla garantia o Estado sempre seria o acionado para reparar este tipo de dano e se necessário buscaria a reparação administrativa posteriormente quanto ao agente, a outra (STJ) abriu a brecha para que existam casos em que o terceiro prejudicado vá diretamente buscar a reparação frente à pessoa física do agente público causador do dano.

Ademais, há de se destacar a possibilidade de que sempre que haja um dano causado por um agente público, primeiro se investigará se este estava agindo com conduta dita regular ou irregular para, então, ver qual o polo passivo da ação de reparação de dano que venha a propor o terceiro.

PROCESSO RELACIONADO: Recurso Especial nº 1.842.613