STJ: Apreensão de drogas em busca pessoal não justifica a invasão de domicílio
Por: Vagner Teixeira da Silva
Entenda o caso
O paciente alega ser vítima de coação ilegal em decorrência de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais no HC n. 1.0000.23.083072-1/000. A defesa pleiteia o trancamento do processo e a soltura do paciente, preso preventivamente e denunciado pela suposta prática do crime previsto no art. 33 da Lei de Drogas, sob os argumentos de nulidade das buscas pessoal e domiciliar e ausência dos requisitos para a decretação da prisão preventiva.
Assim, deferida a liminar para substituir a prisão por medidas cautelares alternativas e prestadas as informações, o Ministério Público Federal opinou pela concessão da ordem. Segundo o disposto no art. 244 do Código de Processo Penal, “a busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.”
Da Fundamentação
Em julgamento sobre o tema, o Rel. Ministro Rogerio Schietti, da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), estabeleceu, interpretando o referido dispositivo legal, alguns critérios para a realização de tal medida. Entre eles, exige-se, em termos de standard probatório para busca pessoal ou veicular sem mandado judicial, a existência de fundada suspeita (justa causa) – baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto – de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência.
O relator afirmou ainda em sua decisão que a normativa constante do art. 244 do CPP não se limita a exigir que a suspeita seja fundada. É preciso, também, que esteja relacionada à “posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”. Vale dizer, há uma necessária referibilidade da medida, vinculada à sua finalidade legal probatória, a fim de que não se converta em salvo-conduto para abordagens e revistas exploratórias (fishing expeditions), baseadas em suspeição genérica existente sobre indivíduos, atitudes ou situações, sem relação específica com a posse de arma proibida ou objeto que constitua corpo de delito de uma infração penal.
Por fim, concluiu o relator que não satisfazem a exigência legal, por si sós, meras informações de fonte não identificada (e.g., denúncias anônimas) ou intuições/impressões subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta, baseadas, por exemplo, exclusivamente no tirocínio policial.
Segundo o auto de prisão em flagrante, em resumo, os fatos transcorreram da seguinte forma: durante operação policial voltada para a repressão qualificada de crimes violentos e ao tráfico de drogas, os policiais visualizaram um indivíduo trajando bermuda preta e camisa azul. Ao avistar a viatura policial, o indivíduo acelerou o passo, andando mais rápido e olhando diversas vezes para trás, o que gerou suspeição por parte da equipe policial.
Diante disso, os policiais abordaram o indivíduo, que foi identificado […], e após busca pessoal foi localizada em uma de suas mãos quatro pedras de substância com características de crack e um aparelho celular. Indagado a respeito das drogas, o abordado inicialmente relatou que as drogas localizadas eram para seu consumo. Posteriormente, ele afirmou que realmente estava praticando a traficância e que em sua residência teriam mais drogas. Sendo assim, deslocaram-se ao local, onde o próprio autor encaminhou os policiais até a parte de baixo de sua residência, onde funciona uma cozinha, e indicou um cesto de roupas sujas, informando que as drogas estariam no fundo daquele cesto. No local apontado pelo autor foram localizados uma barra de maconha, quatro tabletes menores de maconha, quatro pedras brutas de crack, cinquenta pedras de crack embaladas em plástico transparente prontas para o consumo, dez invólucros plásticos prontos para o consumo de cocaína, uma balança de precisão e diversos sacolés comumente utilizados para o embalo de entorpecentes.
A Corte estadual, ao afastar a tese defensiva, argumentou que os autos indicam que a abordagem do paciente pelos policiais não foi fruto de mero arbítrio, tampouco justificada em fundamentos inidôneos. O suspeito teria acelerado o passo ao avistar a viatura policial e olhado diversas vezes para trás, monitorando os policiais. Tal fato, associado à existência de denúncias anônimas em desfavor do paciente – devidamente registradas no Disque Denúncia Unificado –, incutiu fundadas suspeitas nos agentes, motivando a abordagem.
Conforme se depreende do excerto acima, a busca pessoal teve como justificativa o fato de que, além de haver três denúncias anônimas formalmente registradas que apontavam a prática do tráfico de drogas pelo réu, ele, ao avistar a guarnição, acelerou o passo e olhou diversas vezes para trás na direção dos policiais.
Assim, os elementos indicados apontam que a busca pessoal foi precedida de fundada suspeita da posse de corpo de delito, circunstância que inviabiliza o acolhimento da pretensão defensiva, de modo que, ao menos por ora, dentro dos limites de cognição possíveis nesta etapa, não constato ilegalidade patente que justifique o excepcional trancamento do processo, sem prejuízo de discussão mais aprofundada da dinâmica fática na fase instrutória e na sentença.
Ingresso no domicílio
Em relação ao ingresso no domicílio do paciente, todavia, a ilegalidade deve ser reconhecida. Conforme se depreende dos autos, a entrada no lar foi justificada com base na alegação dos policiais de que o réu, depois de ser abordado e revistado em via pública – ocasião em que encontraram quatro pedras de crack –, teria confessado ter mais drogas em sua casa, conduzido os agentes até o local, franqueado a entrada deles no imóvel e indicado a localização dos entorpecentes.
Entretanto, a mera apreensão de drogas em via pública, nos termos da jurisprudência desta Corte Superior de Justiça, não configura justa causa para o ingresso no domicílio do suspeito, porque não autoriza, por si só, presumir a existência de mais objetos ilícitos no interior da residência, sobretudo no caso dos autos, em que o contexto da apreensão não tinha absolutamente nenhuma relação com o domicílio do réu, situado em outro bairro.
Quanto ao consentimento do morador, por sua vez, verifica-se que, no julgamento do HC n. 598.051/SP (Rel. Ministro Rogerio Schietti), ocorrido em 2/3/2021, a Sexta Turma desta Corte Superior de Justiça, à unanimidade, propôs nova e criteriosa abordagem sobre o controle do alegado consentimento do morador para o ingresso em seu domicílio por agentes estatais.
Naquela oportunidade, a Turma decidiu, entre outros pontos, que o consentimento do morador, para validar o ingresso de agentes estatais em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados a crime, precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou coação. Em todo caso, a operação deve ser registrada em áudio-vídeo e preservada tal prova enquanto durar o processo, como forma de não deixar dúvidas sobre o seu consentimento. A permissão para o ingresso dos policiais no imóvel também deve ser registrada, sempre que possível, por escrito. Na hipótese, não há nenhuma comprovação do consentimento do réu para o ingresso em domicílio.
O Ministro Rogerio Schietti pontua que soa completamente inverossímil a versão policial ao narrar que o acusado, depois de ser encontrado com apenas quatro pedras de crack em via pública, teria dito ter mais drogas em casa, convidado os policiais a ir até lá, franqueado a entrada dos agentes no local e indicado a localização das substâncias. Ora, um mínimo de vivência e de bom senso sugerem a falta de credibilidade de tal versão. Pelas circunstâncias em que ocorreram os fatos – réu já detido, quantidade de policiais, todos armados etc. –, não se mostra crível a voluntariedade e a liberdade para consentir no ingresso.
Essa relevante dúvida não pode, dadas as circunstâncias concretas – avaliadas por qualquer pessoa isenta e com base na experiência cotidiana do que ocorre nos centros urbanos –, ser dirimida a favor do Estado, mas a favor do titular do direito atingido (in dubio libertas). Em verdade, caberia aos agentes que atuam em nome do Estado demonstrar, de modo inequívoco, que o consentimento do morador foi livremente prestado, ou que, na espécie, havia em curso na residência clara situação de comércio espúrio de droga, a autorizar, pois, o ingresso domiciliar mesmo sem consentimento válido do morador.
Diante de tais ponderações, foi considerada que a descoberta a posteriori de uma situação de flagrante decorreu de ingresso ilícito na moradia do acusado, em violação à norma constitucional que consagra o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, o que torna imprestável
