STJ: É necessário registro de consentimento que autoriza a entrada policial em domicílio

Postado por: Francisco Ilídio Ferreira Rocha

POR: Vagner Teixeira da Silva

Embora o agravo regimental [AgRg no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 2.405.874 – SP (2023/0240296-0)] em análise trate de outros correlatos à Ação Penal n. 1500290-83.2022.8.26.054, serão mencionados apenas os fatos que dizem respeito à discussão sobre a necessidade de reconhecimento da inadmissibilidade de provas obtidas por meio ilícito e a inviolabilidade do domicílio, dispostos no artigo 5°, XI e LVI da Constituição Federal, respectivamente.

 Entenda o caso

No caso em apreço, alguns policiais afirmam que adentraram a casa de um suspeito (1º acusado) após a sua autorização. Ademais, há testemunhas ouvidas em Juízo que igualmente negam ter havido autorização por parte do morador. Nesse sentido, uma testemunha disse que “viu apenas os policiais “metendo o pé” e arrombando a porta. Disse que o morador não deu autorizou para ingresso dos policiais” (e-STJ, fl. 361); e igualmente, outra testemunha, vizinho do 1º acusado, disse que ouviu gritos, saiu para ver o que estava acontecendo e viu indivíduos armados, pedindo a ele que abrisse o portão. Como não abriu, esses indivíduos armados arrombaram o portão.

Os policiais argumentaram que razão da investigação que realizavam há semanas, obtiveram a informação de que drogas seriam embaladas na casa do 1° acusado e que o recorrente chegaria ao local com drogas. Tal fato motivou a abordagem ainda em via pública do recorrente em frente à residência do 1° acusado. Salienta-se que nada com ele foi encontrado que corroborasse as informações sobre a suposta traficância. Mesmo diante disso, houve a continuação da diligência cautelar no domicílio do 1° acusado.

Embora os policiais afirmem que a entrada no imóvel foi autorizada pelo morador, a defesa técnica e duas testemunhas ouvidas em Juízo negam essa versão, pediu-se, portanto, o reconhecimento da ilegalidade, a declaração da invalidade das provas obtidas mediante violação domiciliar e todas aquelas dela decorrentes. E, por sua vez, a expedição de habeas corpus para anular as provas obtidas.

Contudo, a sentença condenatória e o acórdão impugnado entenderam pela legalidade da busca domiciliar, argumentando que a preliminar invocada pela defesa não merece ser acolhida, reputando-se legítimo o ingresso dos policiais na residência e a consequente apreensão resultante da ação, pois, no caso dos autos, os policiais civis, em juízo, disseram que investigavam os acusados há aproximadamente dois meses e, nesse período, puderam colher elementos que confirmavam o envolvimento de ambos os acusados com o tráfico de drogas, bem como o envolvimento de terceira pessoa, igualmente preso por ação da Delegacia de Investigações sobre Entorpecentes desta cidade. Ainda que, exatamente em razão da investigação obtiveram a informação de que drogas seriam embaladas na casa do réu e que outro acusado chegaria ao local com drogas, o que motivou a abordagem ainda em via pública, do recorrente. Deve-se anotar que os policiais disseram o 1° acusado colaborou desde o início e franqueou o acesso ao interior da residência, o que, no entanto, as demais pessoas que estavam no interior da casa e que ali não residiam tentaram frustrar.

A sentença condenatória destaca que ainda que prospere a alegação de que o morador não autorizou o ingresso dos policiais civis, a investigação realizada há aproximadamente dois meses embasou os servidores públicos de fundadas razões para que, independentemente da vontade do 1° acusado, ingressassem na casa à busca de drogas.

 Da fundamentação

O Ministro Ribeiro Dantas relator da ação no STJ, em sua decisão menciona que a mais recente orientação jurisprudencial, traduzida em novel julgado da Sexta Turma (HC 598.051/SP, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 2/3/2021, DJe 15/3/2021), o consentimento do morador para a entrada dos policiais no imóvel será válido apenas se documentado por escrito e, ainda, for registrado em gravação audiovisual. Ausente a comprovação de que a autorização do morador foi livre e sem vício de consentimento, impõe-se o reconhecimento da ilegalidade da busca domiciliar e consequentemente de toda a prova dela decorrente (fruits of the poisonous tree).

O relator argumenta que a Constituição Federal, no art. 5º, inciso XI, estabelece que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. Ao interpretar parte da referida norma, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 603.616/RO, assentou que “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados” (Rel. Ministro GILMAR MENDES, julgado em 05/11/2015).

Ou seja, as buscas domiciliares sem autorização judicial dependem, para sua validade e regularidade, da existência de fundadas razões de que naquela localidade esteja ocorrendo um delito. Na hipótese, observa-se que os policiais civis aduziram em Juízo que realizaram o monitoramento dos réus por cerca de dois meses, período em que puderam colher elementos que confirmavam o envolvimento de ambos os acusados com o tráfico de drogas. Não obstante, não há nos autos a especificação dos elementos colhidos durante esta averiguação preliminar que confirmassem a suspeita da prática de ilícitos pelos agentes. Ademais, tendo sido levantados referidos elementos, conforme alegado, em um período de investigação de dois meses haveria tempo hábil a requerer a respectiva autorização judicial para a realização da busca domiciliar.

Ressalta-se, ainda, que os elementos de informação obtidos pela polícia não se confirmaram de pronto, eis que, segundo os policiais, havia informações de que o recorrente chegaria a casa do corréu com entorpecentes. Todavia, abordado o réu ainda em via pública, em frente a mencionada residência, nada de ilícito fora encontrado em sua posse ou em seu veículo. Ainda assim, os agentes prosseguiram nas diligências, com a realização da busca domiciliar.

Neste contexto, abordado o agente em via pública e não sendo encontrado com ele nada que corroborasse as informações sobre a suposta traficância, não se verifica fundadas razões para a continuação da diligência cautelar no domicílio.

Vale anotar ademais que a suposta autorização dada pelo 1° acusado não foi minimamente comprovada, sendo inclusive elemento controvertido pelo depoimento de testemunhas ouvidas em Juízo.

Para reforçar o arrazoado o Ministro Ribeiro Dantas cita um caso similar, na Sexta Turma, em voto do Ministro Rogério Schietti – amparado em julgados estrangeiros -, onde se decidiu que o consentimento do morador para a entrada dos policiais no imóvel será válido apenas se documentado por escrito e, ainda, for registrado em gravação audiovisual. Na oportunidade, o Relator destacou ser imprescindível ao Judiciário, na falta de norma específica, proteger, contra o arbítrio de agentes estatais, o cidadão, sobretudo aquele morador das periferias dos grandes centros urbanos, onde rotineiramente há notícias de violação a direitos fundamentais.

O ministro Rogério Schietti pontuou que a voluntariedade do consentimento deve estar expressa e livre de qualquer coação e intimidação. Sendo assim – para salvaguarda dos direitos dos cidadãos e a própria proteção da polícia – conclui ser impositivo aos agentes estatais “o registro detalhado da operação de ingresso em domicílio alheio, com a assinatura do morador em autorização que lhe deverá ser disponibilizada antes da entrada em sua casa, indicando, outrossim, nome de testemunhas tanto do livre assentimento quanto da busca, em auto circunstanciado”. Além disso, toda a diligência deverá ser gravada em vídeo.

Voltando ao caso em análise, embora os policiais afirmem que a entrada no imóvel foi autorizada pelo morador, a defesa técnica de ambos os réus nega essa versão. E uma das testemunhas ouvidas disse que “viu apenas os policiais “metendo o pé” e arrombando a porta. Disse que o [1° acusado] não deu autorizou para ingresso dos policiais” (e-STJ, fl. 361).

Da decisão

Como posto no acórdão paradigma, “Essa relevante dúvida não pode, dadas as circunstâncias concretas – avaliadas por qualquer pessoa isenta e com base na experiência quotidiana do que ocorre nos centros urbanos – ser dirimida a favor do Estado, mas a favor do titular do direito atingido (in dúbio libertas). Em verdade, caberia aos agentes que atuam em nome do Estado demonstrar, de modo inequívoco, que o consentimento do morador foi livremente prestado, ou que, na espécie, havia em curso na residência uma clara situação de comércio espúrio de droga, a autorizar, pois, o ingresso domiciliar mesmo sem consentimento do morador.”

Nesse passo, ausente a comprovação de que a autorização do morador foi livre e sem vício de consentimento, e, no caso concreto, havendo inclusive prova judicializada em sentido contrário ao da suposta autorização do morador, impõe-se, como já mencionado, o reconhecimento da ilegalidade da busca domiciliar e consequentemente de toda a prova dela decorrente (fruits of the poisonous tree).

Adotando o referido entendimento, concedeu-se habeas corpus de ofício para, reconhecida a ilicitude do ingresso dos policiais no domicílio do corréu, anular as provas obtidas a partir da busca domiciliar considerada ilícita na Ação Penal n. 1500290-83.2022.8.26.054.

PROCESSO RELACIONADO: AgRg no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 2.405.874 – SP (2023/0240296-0)